Tabacaria (trecho)
Nao sou nada
Nunca serei nada.
Nao posso querer ser nada.
A parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhoes do mundo que ninguem sabe quem e
(E se soubessem quem e, o que saberiam?).
Dais para o misterio de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessivel a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o misterio das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroca de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lucido, como se estivesse para morrer,
E nao tivesse mais irmandade com as coisas
Senao uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeca,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
A Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E a sensacao de que tudo e sonho, como coisa real por dentro.
(...)
Alvaro de Campos
Um comentário:
ele continua..
(...)
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Álvaro de Campos
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