segunda-feira, 2 de março de 2009

História de Ganesa de um modo diferente

"Conforme o éon, a história de Ganesa é contada de modo diferente. Numerosos os éons, numerosas as histórias. Só um ponto é certo: Ganesa nasce de Parvati 'sem marido', vina nayakena. Por isso o chamaram Vinayaka. Era visto com frequencia velando diante do quarto de Parvati. Era o seu guardião, manso e reflexivo, com a tromba curvada sobre o ventre redondo e uma presa quebrada. À esquerda, trazia uma pena e um tinteiro. Parvati não conseguia passar perto dele sem acariciá-lo. 'Você é meu filho. É meu. De ninguém mais posso dizer que é meu'. Lembrava-se de tudo o que acontecera naquele dia em que, abandonada no leito, molhada em todos os poros com o suor de Siva e o seu, havia começado a fantasiar furiosamente. Jamais teria um filho? Siva era evasivo quando ela o assolava com suas perguntas. Uma vez tinha dito: 'Como poderei ter um filho? Não tenho morte em mim'. Essas palavras foram uma lâmina. 'Agora terei um filho por capricho', Parvati pensou. Lentamente passou pelo corpo um óleo perfumado, misturando-o ao suor, às escaras da pele. Com raiva passava as palmas da mão no ventre, nas pernas, nos seios. Quase se arranhava, para não perder nem o mínimo resíduo. Colheu um grumo de matéria, do qual nasceu Ganesa. Ele não tinha, então, a cabeça de elefante. Era um menino belíssimo, que nunca se separava da mãe. Siva fingiu estar contente, mas estava contrariado. Mestra do ciúme, Parvati, exultante, reconheceu em Siva aquele tormento que lhe era familiar.

Um dia Ganesa ousou abrir a porta do quarto de Parvati, depois de uma briga. Siva decepou-lhe a cabeça. E imediatamente, diante de Parvati emudecida, inavadiu-o uma sombra de afeto, imensa, por aquele corpo exâmine. Ordenou a Nandin que arrancasse a cabeça de Airavata, o elefante de Indra. Em outros tempos, quando Indra era o soberano incontestável dos deuses, isso teria parecido um absurdo. Mas os Devas agora estavam debilitados. Nandin voltou um dia trazendo no lomboa nobre cabeça de Airavata. Uma presa havia se quebrado no feroz duelo. Como um artesão, Siva ajustou a cabeça de elefante no pescoço de Ganesa. Parvati acompanhava tudo com um olhar dulcíssimo. Sabia com quanta perspicácia Siva realizava a delicada operação. E pensara subitamente que só agora seu filho seria verdadeiramente ele mesmo. Desde esse dia, não teve mais medo da solidão. Quando Siva se afastava, e nunca se sabia com certeza se era para se dedicar ao tapas em solidão ou para seduzir uma Apsaras ou uma mulher qualquer ou para destruir ou dar vida a alguma parte do mundo - mas, em todo caso, sua ausencia a perseguia -, Parvati estendia-se no leito entre muitas almofadas e ditava longas histórias. Histórias do mundo que nunca tinha visto. Agachado a seus pés, Ganesa escrevia. Era um escriba velocíssimo, incansável. Assim que acabava, Parvati acariciava sua presa quebrada e beijava sua ampla fronte enrugada."

Trecho do livro "Ka" de Roberto Calasso

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